Emigração Interna

Luiza Futuro
News From Futuro
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11 min readDec 24, 2020

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Na edição de Junho, publicamos uma pesquisa sobre a mudança de hábitos no entitulado “novo normal”, feita junto com o podcast @resumido.podcast. Entre outras questões, perguntamos: “quais mídias você tem utilizado para se manter informado?”.

Como resposta, 23% das 840 pessoas que responderam disseram que estavam evitando notícias. Foi algo que me chamou atenção, mas naquele momento não soube muito bem como interpretar esse assunto, além do sentimento de que, por inúmeros motivos, as coisas não parecem ir nem um pouco bem.

Eis que nesta edição da newsletter, volto à questão e também à atitude de evitar saber das notícias, a partir de um fenômeno chamado Emigração Interna, descrito pela teórica Hannah Arendt em “Homens em Tempos Sombrios”. O livro reúne ensaios biográficos de homens e mulheres que viveram os “tempos sombrios” da primeira metade do século xx.

Entre as narrativas de sombrios tempos como consequência do Hitlerismo, perseguição e rejeição das identidades, a autora descreve que muitas pessoas viviam em uma espécie de exílio interior. Devido à (dificuldade de enfrentar a) realidade lutuosa, parte da população passou a se comportar como se não pertencesse ao seu país, buscando a “invisibilidade do pensar e sentir” longe do espaço da vida pública, social e política.

Nesta edição, me proponho a costurar esse conceito e misturar tempos sombrios do passado com algumas manifestações (dos tempos sombrios) atuais, pensando sobre sociedade, política e tecnologia.

Pandemia e Infodemia

Concomitante à pandemia, fomos acometidos por uma infodemia. Tentando resumir esse dois fatos: um vírus de escala global, nada preocupado com fronteiras políticas ou afetivas, uma ameaça a todos os seres humanos; e um tsunami de informações, de conteúdo em várias redes sociais, com ondas de lives, muito TikTok e uma devastação de notícias falsas, com outros objetivos que não a verdade. Duas manifestações que podem ser entendidas como efeitos colaterais endêmicos da internet que criamos e consumimos e que hoje se resume a nem meia dúzia de empresas, popularemente conhecidas como “big five’s”: Facebook (Whatsapp e Instagram) Google, Microsoft e Amazon.

Com muita sorte, você enfrentou esse contexto pandêmico e só sentiu tendinite, insônia, bruxismo e tristeza profunda.

Longe das notícias

Não são poucos os indícios que mostram a necessidade de tomar uma distância das notícias. Em muitos casos, é até recomendável.

“Infostesiados” foi uma das vibes capturadas pelo report Saídas 2020 da @floatvibes, que descreve o overload anestesiante de informação e apatia frente às manchetes catastróficas. O aumento do tempo que passamos conectados moldou ainda mais a relação de obsessão por informação. Através de gatilhos positivos ou negativos, de recompensas ou punição, as infinitas possibilidades algorítmicas pavimentaram a ideia de engajamento, um termo que refere-se ao hábito das pessoas postarem mais e ficarem mais tempo dentro das plataformas e mídias sociais.

A neutralidade do termo engajamento facilitou a adoção da busca pelo envolvimento e se consolidou como objetivo individual e social. Ganhar likes, views, seguidores, reposts e biscoitos são manifestações de engajamento, exemplos relevantes para descrever o envolvimento no digital, mas seu significado pouco remete à interação, conexão e construção de comunidade. Mais se assemelha (ou se inspira?) no processo de vício neurológico, biológico, ganhando força pelo processo matemático.

O engajamento é desenhado para produzir dopamina, “neurotransmissor que age no prazer e é considerado crucial para mudanças de comportamento em resposta à obtenção de recompensas” (Jaron Lanier, em Dez Argumentos para Deletar Agora Suas Redes Sociais p.20). Uma sensação que muito provavelmente já se consolidou no hábito de não passar muito tempo longe de seu smartphone.

Contribuindo para a epidemia de informação, o governo brasileiro tem um verdadeiro influenciador da política. Bolsonaro usa como principal ferramenta eleitoral o Whatsapp e como estratégia digital o troll. Captura engajamento a partir da amplificação de notícias inflamadas, ou melhor, iscas que, ao promover a desinformação por meio de discursos combativos, acionam emoções primitivas e negativas, recrutando grupos e avatares extremistas e niilistas. Uma estratégia de engajamento que se mostra potente, e que se consolidou como forma de convocar cabos eleitorais e “de fazer política” no século XXI.

Para além dos efeitos do aumento de cerca de 1 hora e 30 minutos na infosfera, percebemos outros comportamentos descritos no resultado da pesquisa feita com @resumido.podcast. Entre eles, está o gasto com bebidas alcoólicas, opção escolhida por 36% dos entrevistados, ficando em segundo lugar, atrás apenas da opção “supermercado”. Na sequência veio a opção chocolates e doces, escolhida por 31%. São respostas que confirmaram, em uma pesquisa mais atual e profunda, as transformações do comportamento da população durante a pandemia. Um estudo que, entre outros aprendizados, revela o aumento de sentimentos negativos, como ansiedade e falta de vontade, além do aumento de vícios.

A pesquisa “ConVid Comportamentos”, realizada pela Unicamp e pela UFMG, falou com 45.161 brasileiros. 40,4% disseram ter sentimentos de tristeza ou depressão e 52,6% afirmaram experimentar sentimentos de nervosismo ou ansiedade, muitas vezes ou sempre.

No que diz respeito aos vícios, o número de cigarros consumidos por dia aumentou, assim como o consumo de álcool. Outro padrão de comportamento que se confirma em ambas as pesquisas é a diminuição ou ausência da prática de exercícios físicos: cerca de 72% das pessoas não estavam fazendo nenhum exercício, ou estavam se exercitando menos do que costumavam. Esse olhar atualizado pela Fiocruz mostra que o percentual dos que realizavam atividades físicas semanais caiu de 30,4% para 12,6%.

Enquanto isso, a busca por meditação no Google cresceu 4.000%, os terapeutas do instagram se destacam como novos poetas e o movimento de êxodo urbano se fortalece. Essas manifestações são capazes de revelar a necessidade de desviar a realidade aparentemente insuportável e se voltar a algum limite psicossomático e existencial.

Afinal, a sensação é de vivenciar uma vertiginosa cacofonia de diferentes formas de linguagem, informações e intenções que moldam a inflação da informação. A multiplicação de frases simples, agudas, e impactantes “lacram” no universo vasto de signos, códigos e memes, trazendo à tona o conceito de semio-inflação de Franco Berardi, que comentei nessa edição da news: “É quando você precisa de mais signos para, palavras, informação, para comprar menos sentido” Asfixia: capitalismo financeiro e insurreição da linguagem, (p.76).

Para William Burroughs, crítico e precursor da geração beat, a inflação consiste essencialmente no fato de que, com o passar do tempo, é necessária uma maior quantidade de dinheiro para comprar sempre menos coisas.

Acho válido aproximar a noção de inflação, a ideia de precisar de mais para obter menos, com o processo de engajamento, onde o objetivo é repetição de envolvimento através de ferramentas mais personalizadas e intuitivas, que facilmente barganham maior engajamento com menor esforço. Este é um processo minimamente semelhante e comparável ao de desenvolver vícios.

Atenta e forte

Hannah Arendt, ao receber o Prêmio Lessing da Cidade Livre de Hamburgo, proferiu um discurso que está incluído em seu livro “Homens em Tempos Sombrios”, no qual destrincha a ideia de emigração interna. Arendt também comenta que teria sido um erro imaginar que a emigração interior teria acontecido somente na Alemanha na época do terceiro Reich. Eu, diretamente no aqui e agora, concordo.

Cá estamos nós, desde março, decifrando o coronavírus e o que significa uma pandemia, enquanto parte expressiva da população decidiu “se retirar” desse contexto. Como forma de não enfrentar essa realidade, há quem tenha escolhido “ficar de fora”, ignorando a existência do vírus (do isolamento, e da máscara), em uma espécie de auto-exílio do cotidiano pandêmico.

Com mais informação e meme e menos textão, o fluxo atual de engajamento rechaça o complexo e acomoda, assim como melancias num caminhão em movimento, a pós-verdade. Um mundo menos psicanálise e mais coach, tecido por uma linearidade binária que não acompanha a noção de mutação e sistemas complexos. Esse mundo sucumbe a sentimentos primários, o que consolida o discurso de um inimigo único por trás desse vírus, no caso, a China. Os adeptos da linearidade (e da ideia de fim) compreendem a pandemia mais ou menos como um romance ou conto de fadas, uma narrativa que ruma ao capítulo final, se encerra e vai à estante da humanidade como mais um momento da história desse planeta.

Na realidade rizomática, o fim da pandemia já não depende mais do vírus, mas de nós, humanos. Com sorte, após a inteligência coletiva, que já se mostrou potente com a criação de boas vacinas em tempo recorde, quem sabe conseguiremos nos aproximar, cuidar e aprofundar em todos os desdobramentos cotidianos, econômicos, sociais e biológicos que a pandemia provocou.

Como reflexo de um momento de emigração interna, vivemos a evidência de um discurso negacionista (ou, se você preferir, “desiluminista”) que privilegia a evidência anedótica no lugar da evidência científica. Como bem elucidou Carol Pires no Retrato Narrado do Bolsonaro: “A evidência anedótica confirma o que você pensa. Por exemplo, se você ou um amigo seu pegou a covid-19 apenas com sintomas leves, você pode achar que esse vírus não passa de uma gripezinha, mas esse exemplo não representa a realidade, que é composta de milhares e milhões de outras evidências que, quando coletadas e analisadas, aí sim viram uma evidência científica”. Isso fatalmente colabora para uma das maiores campanhas anti-vacina globais, onde só no Brasil cerca de 46% da população afirma que não tomaria uma vacina contra a Covid-19 de origem chinesa.

Somente uma população alheia ao planeta Terra (aka casa própria da humanidade), poderia não se importar em despertar doenças já erradicadas. Somente uma população que ignora uma pandemia pode esperar com muitas vidas a iminência da morte (e por uma vacina que seja feita em outro lugar do globo, que não a China). Alienados, ainda que viciados em informação. Um nevoeiro semiótico que atrapalha a visão e nos impede de tomar as melhores decisões. Decisões complexas, que dão muito ou mais trabalho, mas que são pró-humanidade.

Ao contrário do que poderia parecer, se retirar do estado de emigração interna não tem a ver com estar mais perto ou passar mais tempo vendo notícias ou se informando através do Whatsapp, Instagram, Facebook, Google e TikTok. É um exercício de abrir-se ao impossível e à delicadeza. De acordo com Hannah Arendt, para Lessing o pensamento não era algo que brotava do homem ou da mulher, tampouco era a manifestação “de um eu.” Ao contrário, o pensamento é uma descoberta, um outro modo de se mover em liberdade no mundo.

A partir desta reflexão, entendo que a suspensão ou transformação do estado de emigração interna se torna possível a partir da possibilidade de expansão da consciência, da exploração de novos territórios para a criação de consciência. Longe das redes sociais ou da internet, rascunhar vestígios de consciência a partir do contato com outras narrativas e poéticas existentes e possíveis de serem criadas. Se você sente essa necessidade e tem a oportunidade de experimentar outras formas de desbravar e construir sua percepção, pensamento, e interpretação acerca desse momento, faça!

É um exercício subjetivo, que envolve assumir um compromisso com a harmonia de sua humanidade e cooperar com outros modelos evolutivos para a humanidade como um todo. Um encontro com o seu devir mais afetivo, de quem já aprendeu com Hannah Arendt que “o pensamento requer não só inteligência e profundidade, mas sobretudo coragem”.

{01} Troll

Um termo que nasceu no século 9, se tornou um conceito relevante para a internet do século 21.
A adaptação para a língua inglesa do conceito criado pelos nórdicos virou “trolling”, e se referia a técnica de pescar com linha e isca. O primeiro uso da expressão para descrever ações feitas para provocar uma reação data de 1972: pilotos dos EUA usavam “trolling” para se referir a caças russos, rivais na Guerra do Vietnã. Na gíria da Internet, troll se refere a uma forma intencional de discurso, que busca engajamento a partir da incitação ao ódio, postando mensagens violentas que recrutam emoções fáceis e negativas.

{02} Diminuição da Realidade

Um conceito que surge no campo da Realidade Virtual que se concentra em mascarar virtualmente características de um ambiente ou pessoa, suprimindo características, atributos e objetos. Os exemplos podem incluir remover digitalmente edifícios desagradáveis ​​da vista do horizonte de uma cidade, suavizando automaticamente os ruídos do tráfego ou diluir a aparência de estranhos em um bar lotado para que você possa se concentrar em sua companhia.

{03} Hearken

Esses dias ouvi essa expressão em um filme. Seria uma versão ‘old fashion’ de ouvir, prestar atenção. Utilizado em durante a idade média e por figuras bíblicas como profetas para designar o exercício de escutar atentamente as palavras, conselhos e eu diria, compreender metáforas.
Me parece que retornar a raiz e talvez até mesmo mais arcaica de ouvir, nos permite escutar melhor ou pelo menos falar um pouco menos.

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O nome “gigantes adormecidos”, em tradução livre do inglês, é alusivo ao fato de grandes empresas não saberem onde os seus anúncios são publicados via mídia programática por serviços como, por exemplo, o AdSense do Google.
No Brasil, o perfil desse ovimento ganhou rosto em Dezembro.Em entrevista à Folha de S.Paulo, Leonardo de Carvalho Leal e Mayara Stelle, de 22 anos, saíram do anonimato e assumiram autoria da página que tem derrubado a monetização de sites que propagam fake news e discursos de ódio pela internet.

Bioharzard

Ansel Oommen, um artista e trabalhador de laboratório médico, e logo quando a pandemia estourou, ele começou a desconstruir etiquetas brilhantes de risco biológico com uma tesoura, depois reconstruindo-as com precisão cirúrgica no chão de seu apartamento em Manhattan.
“Para metabolizar o trauma e a dor, recorro às artes, porque é uma forma de converter algo intangível e torná-lo em algo que tenha forma”, disse Oommen.

Egg Room

Gala foi a mulher do pintor surrealista Salvador Dalí e também co-autora de tantas obras do pintor. Inclusive a partir de 1930 eles passaram a assinar juntos os seus nomes: Gala-Salvador Dalí’. Em 1969 Salvador Dalí presenteou Gala com um castelo. Ela adorou o presente, dizem, mas estabeleceu algumas regras. Inclusive criou um quarto para chamar de seu para descansar, chamado “egg room”.

Um quarto arredondado acompanhado por um sofá oval e um teto baixo. Cores claras e aconchegantes. Ainda que surrealista, ao ignorar as formas retas oferece outra forma de estar, totalmente intimista, uma espécie de ninho, de barriga de mãe. Entre todos os espetáculos grandiosos dessa casa museu, essa foi a parte ou cômodo mais marcante e de sensação inesquecível, na oportunidade desta visita. Me desculpem as fotos, mas talvez seja o cômodo menos falado mesmo, não encontrei outras.

Flauta Mágica

A Flauta Mágica apresenta-se como uma ópera de formação e como uma alegoria para as provações pelas quais o homem precisa passar para sair das trevas do pensamento medieval em direção da luz iluminista. A ópera foi o resultado de um período de crescente envolvimento de Mozart com a trupe de teatro de Schikaneder, que desde 1789 atuava no Theater auf der Wieden. Em busca de sua força ilumista, dê o play!

arte da news: Lara Fuke
edição e revisão: Nico Sales

Dedico este texto à minha mãe, Maria da Graça Machado.
E agradecer a todes vocês que estão aqui e acompanham a news.
Se cuidem e até 2021!

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